Baseado no capítulo 20 do livro Seja Feliz pra Sempre!

Introdução

O capítulo 20 promete mostrar como funciona a congregação das Testemunhas de Jeová — algo que, a esta altura, o estudante já vivenciou parcialmente ao frequentar reuniões. Mas por trás dessa “apresentação” existe uma agenda maior: estabelecer quem manda, como manda e por que obedecer. Entre interpretações bíblicas peculiares, mudanças sutis de termos e comparações históricas seletivas, o texto constrói uma lógica que vai muito além da simples organização de uma comunidade religiosa.

1. O Deus de Ordem vs. O Deus de Paz

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O capítulo começa introduzindo ao estudante a organização da congregação das Testemunhas de Jeová, partindo do pressuposto de que ele já está familiarizado com a comunidade, pois o livro já o incentivou repetidamente a frequentar as reuniões. Logo na abertura, apresenta-se uma das falácias mais recorrentes no discurso da religião:

“Jeová é um Deus organizado. Então faz sentido que o povo dele também seja assim.”

Em si, a afirmação não é teologicamente polêmica. O problema surge quando ela é usada como base para justificar todo o aparato estrutural e burocrático da religião — aparato esse que o capítulo mostrará apenas superficialmente. A argumentação é apoiada em 1 Coríntios 14:33, 40, com destaque para o verso 40, recitado quase de forma ritual em reuniões de caráter técnico, como encontros de organização de funções manuais, de manutenção e de apoio logístico. Para um novo estudante, especialmente homem, essas tarefas têm grande chance de se tornar a principal forma de participação na congregação.

O verso 33 afirma: “Deus não é Deus de desordem, mas de paz”. Aqui se revela a fragilidade do argumento. As Testemunhas de Jeová interpretam o texto como se dissesse que Deus é um “Deus de ordem”, ignorando que a oposição feita por Paulo não é entre “desordem” e “ordem”, mas entre “desordem” e “paz”. Assim, substitui-se uma qualidade relacional e positiva — a paz — por uma qualidade estrutural e hierárquica — a ordem. O resultado é um salto lógico que legitima a ideia de que um ambiente ordenado é, necessariamente, pacífico. No entanto, a associação entre ordem e paz não é automática.

Um exemplo claro dessa falha é a analogia com o ambiente militar: altamente ordenado, com hierarquia rígida, horários controlados, disciplina e subordinação ao grupo acima do indivíduo. Apesar disso, é um ambiente marcado por agressividade, abusos, estado constante de alerta, traumas e percepção contínua de inimigos. É organizado, mas está longe de ser pacífico. Ao trocar “paz” por “ordem” no versículo, a retórica das Testemunhas de Jeová oculta uma qualidade bíblica mais profunda para sustentar a necessidade de uma estrutura interna rígida e hierarquizada, controlada pelo Corpo Governante — que, ironicamente, opera com a lógica de um exército bem treinado.


2. O líder das Testemunhas de Jeová

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O capítulo afirma que Jesus Cristo é o líder das Testemunhas de Jeová, apoiando-se em Efésios 5:23. Tal declaração não é incomum, já que qualquer denominação cristã necessariamente afirma o mesmo. No entanto, o texto rapidamente encaminha o estudante para um ponto muito mais relevante — embora não apresentado como tal: a doutrina central da religião, a do Escravo Fiel e Prudente de Mateus 24:45-47.

“Quem é realmente o escravo fiel e prudente, a quem o seu senhor encarregou dos seus domésticos, para lhes dar o alimento no tempo apropriado?”

As Testemunhas interpretam esse texto de forma única entre as denominações cristãs. Segundo sua teologia atual, não se trata de um indivíduo literal (como se acreditava nas eras Russell e Rutherford), mas de uma classe de cristãos responsáveis por prover “alimento espiritual” — isto é, conteúdo doutrinário — aos demais. Embora a ideia de líderes espirituais encarregados de ensino não seja exclusiva (o catolicismo, por exemplo, usa a figura de Pedro como “a rocha” para fundamentar o papado), a aplicação de Mateus 24 feita pelas Testemunhas exige um salto interpretativo considerável. O capítulo omite que esse discurso de Jesus trata, no contexto, de sua parousia — a presença ou volta do Filho do Homem — e não de estrutura administrativa ou hierarquia congregacional.

Dentro dessa interpretação, as Testemunhas afirmam que o Escravo Fiel foi escolhido por Jesus entre 1914 e 1918, início de sua presença invisível segundo cálculos escatológicos próprios. A partir do verso 47, concluem que esse grupo recebeu autoridade divina sobre todos os cristãos, com poder para prover instrução doutrinária e governar espiritualmente. Essa ênfase no verbo “governar” conecta-se à menção posterior ao Corpo Governante, comparado, no capítulo, ao Concílio de Jerusalém narrado em Atos 15.

O Concílio de Jerusalém é usado como paralelo para sustentar um modelo centralizado de liderança. Contudo, há diferenças substanciais: o concílio se deu em Jerusalém porque o problema partiu dali, não porque houvesse ali um “corpo governante” permanente; e o Novo Testamento mostra que Paulo tinha sua própria base em Antioquia e não se submetia a Jerusalém como autoridade central. Esses fatos enfraquecem a ideia de que o arranjo moderno do Corpo Governante reflita uma estrutura do primeiro século.

O Corpo Governante, na prática, é o grupo de homens sediados atualmente em Warwick (EUA) que decide todos os aspectos organizacionais e doutrinários da religião: desde publicações e vídeos até políticas de aparência, educação, festas, empregos e comportamentos sociais. Mudanças recentes, como uso de barba, roupas ou interação com ex-membros, são anunciadas com a frase “O Corpo Governante decidiu…”. Curiosamente, o termo “corpo governante” não aparece na Bíblia, o que contrasta com a tendência cristã de empregar nomenclatura bíblica para cargos e funções.

Após descrever esse arranjo, o capítulo surpreendentemente declara: