(Baseado no capítulo 15 do livro “Seja Feliz para Sempre!”)
Para qualquer religião cristã, o entendimento sobre a pessoa e natureza de Jesus Cristo — o que chamamos de cristologia — é central. Ele é a figura em torno da qual gira a fé, a salvação e a identidade doutrinária. Neste sentido, o capítulo 15 representa uma virada fundamental no livro das Testemunhas de Jeová: é aqui que a organização assume claramente uma das suas principais divergências em relação à cristandade como um todo — a negação da divindade absoluta de Jesus.
O texto não economiza palavras ao declarar: Jesus é um anjo. Um ser espiritual poderoso, glorificado, primordial — mas ainda assim, uma criatura, subordinada a Deus. Essa compreensão diferencia radicalmente as Testemunhas de Jeová de praticamente todas as demais denominações cristãs, desde católicos e ortodoxos até protestantes históricos e neopentecostais, que — com todas as diferenças internas — sustentam de alguma forma que Jesus é divino em essência. Curiosamente, embora as Testemunhas reconheçam que Jesus é um ser espiritual celestial e, nesse sentido, tecnicamente “divino”, elas evitam completamente o uso desse termo. Raramente se referem a ele como “deus” (mesmo com letra minúscula), preferindo descrever suas funções e títulos com cuidado — talvez por receio de confundir o leitor ou diluir a distinção absoluta entre Jesus e Jeová, que é doutrinariamente essencial para a organização. Essa posição teológica, no entanto, não é nova: é praticamente idêntica ao arianismo, uma doutrina cristã do século IV que afirmava que Jesus foi criado por Deus e, portanto, era subordinado a Ele. O arianismo foi amplamente rejeitado como heresia pelos concílios cristãos da época — especialmente no Concílio de Niceia (325 d.C.) — e combatido pelas lideranças que definiriam a ortodoxia cristã nos séculos seguintes.
O título “primogênito”, atribuído a Jesus na Bíblia, é tradicionalmente entendido pela cristandade como um símbolo de proeminência — ou seja, Jesus seria o primeiro em importância, não necessariamente o primeiro a ser criado. Essa leitura permite sustentar que Cristo é eterno e consubstancial com Deus, como afirmado pela doutrina da Trindade.
As Testemunhas de Jeová, porém, adotam uma leitura mais literal: para elas, Jesus foi literalmente a primeira criação de Jeová, o início de tudo. Depois disso, tudo o que existe — o universo, os anjos, a humanidade — teria sido criado “por meio” de Jesus, atuando como um “ajudante mestre” de Deus. Essa visão posiciona Jesus como um ser pré-existente, mas não eterno, e portanto subordinado ontologicamente a Jeová.
Na prática, essa crença coloca Jesus em um patamar elevadíssimo — criador secundário, porta-voz oficial de Deus, reflexo perfeito de sua personalidade — mas sem jamais cruzar a linha que o colocaria no mesmo nível de divindade que Jeová. A organização insiste nessa distinção como essencial, embora, paradoxalmente, a função e os atributos que atribui a Jesus o aproximem bastante daquilo que a maioria das igrejas cristãs chamaria de divino.
O título “unigênito”, traduzido do grego monogenēs, é amplamente entendido pela maioria das tradições cristãs como uma expressão da singularidade ontológica de Jesus — ou seja, ele seria o único do seu tipo, único em essência, compartilhando da natureza divina do Pai. Nessa leitura, Jesus não é apenas distinto dos humanos e dos anjos; ele é divino por natureza, coeterno com Deus, e portanto Deus Filho. Essa interpretação apoia diretamente a doutrina da Trindade, segundo a qual o Pai, o Filho e o Espírito Santo são três pessoas com a mesma substância divina.
As Testemunhas de Jeová, por sua vez, reinterpretam “unigênito” como uma referência literal à origem de Jesus. Segundo elas, Jesus é o único ser criado diretamente e exclusivamente por Jeová, sem a mediação de nenhum outro agente. Após esse ato criativo inicial, tudo o mais que passou a existir foi criado por meio de Jesus, que é descrito frequentemente nas publicações da organização como um “ajudante mestre”, um arquiteto subordinado que executa os planos do Grande Arquiteto, Jeová.
Esse modelo resolve, superficialmente, algumas tensões bíblicas — como a subordinação clara entre Pai e Filho em diversos textos — mas levanta outros dilemas importantes. Afinal, se Jesus criou tudo, é porta-voz oficial de Deus, reflete perfeitamente sua personalidade, governa o universo como Rei celestial e, após sua morte, é exaltado acima de todos os seres, onde está exatamente a fronteira entre criatura e Criador? A resposta das Testemunhas é que há, sim, uma distinção: Jesus é semelhante a Deus em tudo — exceto no fato de que ele teve um começo. É uma linha sutil, mas que a organização considera intransponível.
Essa distinção fina, porém, não se sustenta de forma clara na prática. As funções e atributos que a organização atribui a Jesus são, em essência, os mesmos que qualquer cristão tradicional associaria a um ser divino. No entanto, por razões doutrinárias e históricas, as Testemunhas evitam a todo custo o uso do termo “divino” para descrevê-lo — mesmo que tecnicamente o considerem um ser espiritual celestial, glorificado e singular. Essa ambiguidade não apenas revela uma tensão interna na cristologia da organização, mas também mostra que a rejeição da divindade de Jesus, embora central, é construída mais por negação da tradição cristã do que por uma solução teológica inteiramente coerente.