Baseado no capítulo 21 do livro Seja Feliz para Sempre!
O capítulo 21 do Seja Feliz para Sempre! pretende responder uma pergunta-chave: como as Testemunhas de Jeová pregam suas “boas novas”. A resposta, no entanto, vai além da descrição de métodos. O texto combina interpretações bíblicas específicas, histórias emocionais e recursos audiovisuais para transmitir ao estudante uma ideia simples, mas poderosa: a pregação é prova de obediência a Deus e marca exclusiva da “verdadeira religião”. Por trás desse discurso, entretanto, percebe-se uma construção retórica que mistura motivação espiritual, controle organizacional e uma visão bastante seletiva do que significa pregar.
O capítulo 21 começa com uma afirmação que serve de base para toda a argumentação: “Jeová vai usar seu Reino para acabar com todos os nossos problemas.” Em seguida, recorre a Mateus 28:19-20, em que Jesus envia seus discípulos a pregar em toda a terra, apresentando a pregação como mandato divino e universal. O capítulo introduz esse mandato e, nos tópicos seguintes, o conecta ao cumprimento profético e à prática organizacional da obra.
A pregação é apresentada como um cumprimento visível da profecia de Mateus 24:14, funcionando como combustível para a fé dos membros. A lógica é: se a pregação mundial avança, a profecia se cumpre e o “fim” se aproxima. Contudo, surgem dificuldades: para as Testemunhas, o “fim” (Armagedom) é iminente, mas a organização não define com clareza “quantas terras faltam” ser alcançadas — reconhecer a obra como concluída criaria a expectativa de ação imediata de Cristo; admitir que falta muito reduziria a urgência. A própria definição de “nação” permanece elástica, permitindo ajustes conforme a necessidade narrativa.
Relatórios anuais indicam em quantos países a obra está organizada, e alguns usam esses números como termômetro do cumprimento. O critério, entretanto, é inconsistente: há países onde a religião é banida (como a Rússia) mas onde ainda há atividade; além disso, a própria organização valoriza empreitadas individuais em locais sem congregações. Assim, o “mapa de cobertura” torna-se irrefutável por definição — e, portanto, pouco informativo.
Outro argumento é o do alcance linguístico: pregar em mais de mil línguas seria evidência de apoio divino. Essa tese exigiria que nenhuma outra religião alcançasse feitos similares. Não é o caso: a Igreja Católica e denominações como os Mórmons também têm presença global e materiais em muitas línguas. Se expansão mundial fosse critério suficiente de bênção divina, a conclusão teria de valer igualmente para elas — ponto que o capítulo não enfrenta.
O capítulo dá destaque à expressão “de casa em casa” em Atos 5:42, conforme traduzido na Tradução do Novo Mundo. Para as Testemunhas de Jeová, esse detalhe linguístico sustenta a ideia de que o método legítimo de evangelização é o trabalho sistemático de porta em porta. Por décadas, a organização defendeu de forma rígida que não havia alternativa válida a esse estilo de pregação. A Sentinela de 15 de janeiro de 1991, por exemplo, argumentava que textos como Atos 20:20 reforçavam esse padrão, ao afirmar que Paulo não visitava apenas crentes, mas também descrentes, “de casa em casa”. Na época, enfatizava-se que discursos públicos nunca poderiam substituir o contato pessoal às portas.
“Embora falar em público seja uma das maneiras de declarar as boas novas, isso não substitui o contato pessoal, às portas.” (A Sentinela, 15/01/1991)
Com o tempo, a retórica se suavizou. Hoje, a organização reconhece nominalmente outros métodos — como os estandes públicos, as ligações telefônicas e o envio de cartas. Contudo, na prática, tanto líderes quanto membros esperam que a maior parte da participação venha do trabalho de porta em porta. A longa tradição que enalteceu esse método mantém seu peso simbólico, funcionando como referência de “fidelidade” e como ferramenta de controle organizacional, pois é o formato mais fácil de mensurar e supervisionar.
Vale notar que todo esse edifício doutrinário depende de uma escolha tradutória. O grego de Atos 5:42 pode ser traduzido tanto como “nas casas” quanto como “de casa em casa”. Muitas versões bíblicas optam pela primeira forma, indicando ensino em ambientes domésticos, enquanto a Tradução do Novo Mundo preferiu a segunda — mais próxima do estilo missionário já praticado pela religião desde meados do século XX. Não há nos relatos evangélicos ou em Atos descrição de cristãos percorrendo portas sequenciais em vilarejos. O padrão observado é outro: sermões públicos e conversas ocasionais ou em contextos de hospitalidade.
Assim, a tradução preferida pelas Testemunhas parece ter sido moldada menos pelo contexto bíblico e mais pela identidade proselitista que já marcava a religião. O resultado é que a prática de porta em porta, embora não encontre paralelo histórico nos primeiros cristãos, foi consolidada como um símbolo distintivo da fé, reforçado por uma escolha interpretativa deliberada.