(Baseado no capítulo 19 do livro Seja Feliz pra Sempre)
Após dedicar os capítulos anteriores à construção de uma cristologia própria e à definição gradual do que seria um “verdadeiro cristão”, o livro Seja Feliz para Sempre! abandona a sutileza e aborda de frente a questão: as Testemunhas de Jeová são cristãos verdadeiros?. A resposta, previsivelmente, é afirmativa — mas sustentada por três pilares cuidadosamente alinhados com a narrativa construída desde o início da Parte 2: (1) a teologia “correta” e “baseada na Bíblia”, segundo sua própria interpretação; (2) o próprio nome “Testemunhas de Jeová” como argumento; e (3) o amor demonstrado entre seus membros.
Embora o capítulo apresente essas ideias como simples constatações, a estrutura argumentativa revela um trabalho retórico delicado: dar ao estudante uma sensação de estabilidade histórica, legitimidade bíblica e moral elevada — ao mesmo tempo em que evita expor, de forma clara, aspectos polêmicos da história e práticas da organização.
O capítulo inicia afirmando que a principal prova do cristianismo verdadeiro das Testemunhas de Jeová é sua teologia “correta” e “baseada na Bíblia”. Aqui, a organização se permite um momento de relativa transparência ao mencionar, de forma tímida, o ano de 1870 como marco inicial — “Naquela época, um grupo de pessoas começou a estudar a Bíblia com bastante atenção” —, referência indireta ao surgimento do movimento dos Estudantes da Bíblia, liderado por Charles Taze Russell.
Apesar dessa alusão, o texto romantiza o contexto original, sugerindo que esses estudos eram neutros e imparciais, quando, na realidade, eram conduzidos por um grupo homogêneo, com origens no protestantismo, presbiterianismo e adventismo, fortemente inclinado ao milenarismo e à escatologia, e abertamente avesso à Igreja Católica. Russell, como líder central, ditava quais conclusões seriam publicadas — um arranjo organizacional com características típicas de um movimento sectário nascente.
O contraste entre o passado e o presente é profundo. Das crenças defendidas por Russell, apenas algumas — como a rejeição do inferno de fogo, da imortalidade da alma, da Trindade e a ideia de uma volta invisível de Cristo — permanecem intactas. Doutrinas centrais de sua época, como a crença de que todos os cristãos iriam para o céu, o arrebatamento em 1914, a adoração a Jesus e o uso da cruz, hoje são rejeitadas pelas Testemunhas. O capítulo omite essas mudanças, criando no estudante a impressão de estabilidade e continuidade, quando, na realidade, o corpo doutrinário atual é fruto de revisões radicais.
O próprio vídeo citado pelo capítulo, que retrata Russell decepcionado com outras religiões e decidido a criar a sua, expõe uma contradição: aquilo que hoje as Testemunhas chamariam de “apostasia” ou “sectarismo” foi exatamente o que deu origem ao seu movimento. Mais ainda: Russell afirmava que Deus havia usado um pastor adventista para atraí-lo — algo que, na teologia atual das Testemunhas, é inadmissível.
Prevendo que essa narrativa histórica, se analisada criticamente, poderia levantar suspeitas, o capítulo introduz um conceito chave: a “luz que clareia mais e mais” (Provérbios 4:18). Essa metáfora é reinterpretada como uma espécie de profecia sobre revelações divinas graduais, legitimando mudanças doutrinárias como parte do plano de Deus. Trata-se de um salto lógico forçado — o texto bíblico é claro em seu sentido original e nada tem a ver com doutrina progressiva. O efeito dessa interpretação é inverter a lógica: erros doutrinários passados deixam de ser provas de falibilidade e passam a ser tratados como evidências de cuidado divino. Assim, revisões motivadas por fatores como queda no número de fiéis, necessidade financeira ou pressão judicial são reembaladas como manifestações da vontade de Deus.
O segundo pilar é surpreendente: o próprio nome da religião. O capítulo lembra que o grupo não adotou o nome “Testemunhas de Jeová” até 1931, citando Isaías 43:10 e Hebreus 12:1 para legitimar a escolha, além de Apocalipse 1:5, onde Jesus é chamado de “testemunha fiel”. Essa seleção de textos, no entanto, desloca o foco da pergunta original — se são cristãos verdadeiros — para uma ênfase no nome divino, uma característica que, por si só, não prova alinhamento com o cristianismo primitivo.
O contexto histórico revela muito mais do que o capítulo admite. Russell, de fato, não queria um nome específico, daí o genérico “Estudantes da Bíblia”. A mudança para “Testemunhas de Jeová” ocorreu já na era Rutherford, mais de uma década após a morte de Russell, num momento em que o controle da organização havia passado por um golpe editorial e enfrentava um cisma interno. A adoção do novo nome teve clara função de diferenciação, distanciando o grupo principal das facções dissidentes e reforçando a autoridade centralizada de Rutherford.
O vídeo ilustrativo do capítulo dramatiza o anúncio de Rutherford, mas com uma curiosa reescrita histórica: refere-se a Russell como “irmão” em vez de “Pastor” — título que ele de fato usava e que evidenciaria sua autoridade religiosa formal. A cena também normaliza uma situação extrema: membros que foram a uma reunião como “Estudantes da Bíblia” e saírem de lá, no mesmo dia, como “Testemunhas de Jeová”, por decisão unilateral do líder máximo. Esse tipo de transição abrupta, longe de ser mero detalhe administrativo, é característica típica de grupos com dinâmica sectária.
Ao justificar a mudança, Geoffrey Jackson afirma no vídeo que ela permitiu ao grupo deixar de ser “um conjunto indistinto de pessoas unidas pelo interesse em estudar as Escrituras”. Historicamente, isso é falso: o núcleo central permaneceu com a sede, os recursos e a máquina editorial, mantendo hegemonia sobre os demais grupos de Estudantes da Bíblia. O nome, de fato, criou uma identidade fortemente diferenciada — mas o fez às custas de um rompimento que o capítulo não descreve em sua totalidade.